COMBATE AO RACISMO SEM FRONTEIRAS
Ex-consul da França na Bahia,
Mamadou Gaye sofre racismo, luta na justiça por reparação e questiona: “qual o
preço do preconceito?”
De origem senegalesa e
naturalizado francês, Mamadou Gaye é facilitador em transformação cultural das
organizações e mestre em Humanidades e Comunicação pela Universidade de
Sorbonne em Paris. Após quatro anos dedicados à diretoria da Aliança Francesa
de Salvador, entre os anos de 2017 e 2021, optou por continuar morando em
Salvador onde continuou a atuar como Cônsul honorário da França na Bahia, cargo
ocupado desde fevereiro de 2019. A carreira a serviço do público e a favor
da promoção e valorização da arte e cultura franco-brasileira não
impediram que o franco-senegalês fosse mais uma vítima do racismo no
Brasil. Negro, ele adotou a Bahia como morada e também a luta contra o
preconceito. “Estou vivendo um profundo sentimento de injustiça diante do que
considero uma dupla violência. Sofrer racismo é doloroso, mas ver a justiça não
condenar com firmeza o fato é outra violência”, fala indignado o doutorando no
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
Foi atuando como cônsul
honorário da França que atendeu com a cordialidade de sempre o francês
Fabien Liquori, que mora na Bahia e buscou suporte para resolver questões
administrativas sobre um determinado auxílio. Diante da impossibilidade de
ter pedidos de ordem pessoal atendidos como gostaria, Fabien
Liquori passou a difamar, por email, o representante da França na Bahia. O
processo de assédio moral e injuria racial tem inúmeras provas documentadas
através das reiteradas mensagens ofensivas, questionando o cargo e a
competência de Mamadou, o qualificando como “tirano africano” e expressando o
desejo de que o mesmo voltasse para “seu buraquinho em Paris”.
Outras mensagens, sempre
copiando interlocutores institucionais, não só da Bahia, mas de outros estados
e países, com a intenção de expor e pressionar Mamadou, eram carregadas de
acusações e conteúdos racistas com intuito de desestabilizar e ferir a honra e
reputação do mesmo. Além do consulado da França em Recife, as mensagens
chegaram à Academia de Letras da Bahia (ALB). Fabien Liquori foi alvo
de denúncia policial pela equipe da Fundação Pierre Verger. “Todas as mensagens
ofensivas foram incluídas no processo. E o mais triste: é que a pessoa não teve
medo de fazer as ofensas por escrito por julgar que está protegido pela cor da
pele dele”, reitera Mamadou que esteve na gestão do Consulado da França na
Bahia por cinco anos e cinco meses.
Após julgamento em primeira
instância, a justiça determinou pagamento de danos morais no valor de R$ 3 mil,
quantia considerada irrisória por Mamadou, que decidiu seguir com o processo
reivindicando retratação pública, que não foi sequer julgada na primeira
instância. O pleito na segunda instância por dano moral era de R$ 40 mil
reais, além de novo pedido de retratação pública. Mamadou tem consciência de
que valor algum paga os constrangimentos e aborrecimentos frutos do racismo que
deixa marcas profundas nas vítimas. “Qual é o preço do racismo? Independente do
valor, a dor é ver que, mais uma vez, a justiça minimizou a situação. O dano
foi público, a injúria foi pública. A retratação precisa ser pública também,
por uma questão, sobretudo, educativa”, argumenta.
Justiça ainda minimiza
racismo
A maioria dos pedidos de
indenização por práticas de racismo e injúria racial na esfera civil é
procedente no Brasil, ou seja, apresenta ganho de causa para a vítima.
Essa é a principal conclusão de pesquisa conduzida pelo Núcleo de Justiça
Racial e Direito da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) no fim de 2023. A
pesquisa Segurança da população negra brasileira: como o sistema de
justiça responde a episódios individuais e institucionais da violência racial analisou
618 pedidos de indenização por danos morais de pessoas negras que relatavam
terem sido vítimas de racismo, discriminação, injúria racial ou violência
policial. Do total, a vítima ganhou a ação em 62% dos episódios. Embora o
percentual seja alto, o estudo mostra que os juízes ainda compreendem os crimes
de racismo como danos à honra, portanto, de caráter individual, sem dano
coletivo. Isso indica, na visão dos pesquisadores, que os juízes consideram
esses crimes como “menos graves”. Em primeira instância, 51% das indenizações
chegam a R$ 5 mil. Já na segunda instância, os valores chegam até R$ 10 mil em
70% dos casos.
Mamadou trava agora nova
batalha judicial reivindicando Embargo de Nota. De acordo com a Lei 9.099,
o teto do Juizado Especial Cível é de 40 salários mínimos. “Pleiteamos apenas
40 mil reais e a retratação pública que o Juizado Especial, tanto em primeiro
quanto em segundo grau, se omitiu”, destaca o advogado Rodrigo Moraes. A Lei
14.532/2023, publicada em janeiro deste ano, equipara injúria racial ao crime
de racismo. Com isso, em tese, a pena tornou-se mais severa com reclusão de
dois a cinco anos, além de multa, não cabe mais fiança e o crime é
imprescritível. “Estamos na cidade mais negra do mundo fora da África, e
um representante de um país parceiro do Brasil é tratado desta forma: um caso
característico de racismo. É mais um caso que não é tratado com a seriedade que
deveria pela justiça. Crime é crime!”, defende.
Mamadou deixou no consulado
resolutividade e humanidade como legado. Mesmo no período pandêmico, sua gestão
foi reconhecida por mais de 500 franceses e 500 brasileiros que solicitaram
serviços a cada ano. “É muito triste que depois de tanta dedicação e comprometimento,
trabalhando fora do horário e aos finais de semana quando necessário, uma
pessoa se ache no direito de me difamar por não ter um desejo pessoal, que
estava fora da minha competência, atendido. Esses insultos gratuitos são
injúria racial”, reitera destacando que, apesar de desgastante, a batalha
judicial e a decisão de tornar pública a situação é uma forma de contribuir
para o letramento racial da justiça e da sociedade. “O racismo é algo doloroso,
cansativo e onipresente, mas é importante se posicionar e lutar”, conclui
Mamadou.